Não me chame de Guerreira

“Eu queria conseguir dormir 8 horas ininterruptas, escrever 20 páginas de uma vez, ouvir Belchior olhando as nuvens, não ter medo o tempo todo, não ter vontade de chorar quando o pequeno pede atenção, não me sentir um fracasso cada vez que não sei o que fazer. Queria cada coisa na sua caixinha, ter tempo pra tomar aquele café, aquela cachaça, pregar os quadros na parede, molhar as plantas que estão morrendo, pregar aquele botão que já perdi, lembrar daquele insight ótimo que tive há dois dias e não anotei. Queria salvar o mundo, ou pelo menos a mim mesma, queria não sentir tanto ódio, tanto nojo, o estômago revirado o tempo todo, por tanto tempo. Queria que o tempo desse uma trégua, que o dia tivesse 30 horas para que – quem sabe – eu conseguisse apaziguar a máquina produtiva que roda incessante aqui dentro. Queria que alguém dissesse que vai dar tudo certo e que, no fim de tudo, valeu a pena. Um pouquinho de certeza, um beijo de boa noite, que fôssemos felizes, às vezes, um pouco. Queria as palavras certas, essas que nunca encontro, nunca estão lá, nem aqui, que o choro ajudasse e o cinza não durasse tanto tempo.” 

O texto acima foi postado no último ano do meu doutorado, durante o período mais difícil da escrita da tese. Eu já estava devastada e exausta, perdida, infeliz. Mas mesmo assim toquei o barco até a defesa. Ao fim da tese, muito bem recebida por seu conteúdo crítico, não alcancei a sensação de dever cumprido. Meu casamento acabou, meus filhos ainda estão fazendo acompanhamento terapêutico para processar a ausência da mãe e eu me pergunto por que não fiz diferente. Por que não desisti enquanto era tempo. Eu me odiei todos os dias, absolutamente todos os dias enquanto escrevi a tese. Sentia-me uma fraude e não via sentido em tanto trabalho para nada.

Eu me lembrei desse post durante toda a semana da mulher, ao ler incontáveis textos sobre a capacidade feminina de organização, cuidado e superação. Um modelo de feminilidade que reitera que para ser feliz uma mulher precisa ser bonita, desejável,  duplamente competente, magra, vaidosa, jovem. Forte, mas sem ameaçar a masculinidade hegemônica. Sexy sem ser vulgar. Mãe dedicada e abnegada. Inteligente, culta, engraçada, carinhosa. Bem sucedida.

E quem é que cuida dessa mulher exausta? Cansada de tentar se encaixar num padrão irreal e castrador? Pois, se está ocupada demais, não há tempo para pensar em sua própria condição. E se ela faz todo o trabalho (principalmente o afetivo), o outro não precisa fazê-lo, não é?

Escrevi uma tese sobre o fracasso. Sobre como o discurso do sucesso, do pertencimento e da aceitação rouba nossa potência. E como precisamos aprender a fracassar. Cada vez mais tenho visto posts de mulheres expondo o quanto sofrem por tentar se adequar. O sofrimento de não ser digna de amor, de não ter o corpo certo, de não conseguir existir nesse mundo em que só há um jeito de ser mulher. E nunca é o nosso. Precisamos parar de naturalizar o sobretrabalho, a superação como um atributo feminino. Precisamos, com urgência, criar outros jeitos de ser mulher. E aprender a viver com eles. E aceitá-los.

Decidi expor esse texto porque muitas pessoas me admiram e me tratam como se eu tivesse algum tipo de habilidade extraordinária de dar conta das coisas. Não, não tenho. Na maioria dos dias mal consigo levantar da cama de manhã. Todo mundo tem suas batalhas internas. Estou bem, na medida do possível, sendo atendida, acompanhada e amada por pessoas maravilhosas que me aceitam como sou. E me obrigam a aceitar ajuda mesmo quando eu não quero.

Portanto, não me chame de guerreira. ❤

PS: Para quem tem curiosidade sobre a tese, segue o link: https://tede.utp.br/jspui/handle/tede/1219

 

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235 pensamentos sobre “Não me chame de Guerreira

  1. Estou me sentindo assim nesse período. Texto mais q maravilhoso e emocionante.
    Esquecemos que somos seres humanos e não máquinas.

    Sou mestre em música e pretendo me inscrever em seleção de doutorado.

    Gostaria muito de ler a sua tese.
    Meu e-mail: caumus@gmail.com

    Grande abraço. Não a conheço mas já a admiro.

  2. Adorei o texto!
    Com certeza quero ler a sua tese.
    Realmente não é fácil viver uma imposição de que devemos enfrentar tudo, e quem cuida de nós? Me identifico.

  3. Não sei a idade da maioria das mulheres desses comentários, mas acho que são mais novas do que eu. Tenho uma notícia para dar: essa pressão segue sempre! Tenho 65 anos, trabalho e ainda sou cobrada! Já passei por quase tudo isso que vocês sentem. Deixou marcas em mim e no meu filho. E hoje ainda luto pelo direito de só olhar os passarinhos comendo banana na minha varanda, ler o dia todo e ouvir música sossegada, sozinha. Há dias que eu mesma ainda me cobro! Por vezes o inimigo somos nós mesmas. Libertemos-nos: a vida é nossa!

    • Olá, Rebecca, eu tenho 43 anos e quando achei que estava começando a me libertar vi que estava mais presa do que nunca. São diferentes as formas de sujeição e precisamos estar atentas a elas. Cada uma pode construir um caminho mais leve, longe das pressões sociais. É preciso estar atenta e forte. Bjos

  4. Sempre que posso (preciso) venho aqui ler e reler o seu texto. Digamos que eu me encontro na primeira situação.. Obrigada, suas palavras me fazem parecer menos louca. Gostaria muito de ler sua tese, teria como?

    • Oi, Bruna, fico muito feliz em saber que o texto tem te ajudado. Eu gosto muito de escrever e sempre que posso coloco no papel (ou na tela, agora) o que estou sentindo. Nunca tive leitoras, pois o blog era só pra registrar esses meus sentimentos e está sendo muito legal poder trocar com as pessoas que leram o texto e aparecem por aqui. Não estamos loucas, estamos sofrendo. E é importante falarmos sobre isso. Estou aqui se quiser conversar, ok? Mandei o link da tese por email. Bjos e fique bem.

  5. Pingback: Segunda menos ordinária // 2ª Temp. // EP #13 | Bendita Rádio

  6. Olá!! Fiquei extremamento tocado com a clareza do seu texto, é lindo. Ele me fez refletir sobre a beleza e a força que vocês mulheres possuem. Vou te chamar de guerreira sim. Quem disse que guerreiro não fracassa? Estou aqui tentando digerir suas palavras e encontrar alguma razão que me convença que diante de vocês mulheres temos de fato essa força toda. Não, não temos! Parabéns pela sua tese! Parabéns mulheres, independente das suas escolhas, vocês são guerreiras sim!
    Um forte e carinhoso abraço!
    Carlos Saraiva

  7. Parabéns pela matéria!!!Queremos dar conta de tudo e nos encaixar em todos os padrões que a sociedade nos impõe!!!Queremos e querem que sejamos super mullheres , heroinas e guerreiras,mas isso é humanamente impossível!!!Gostaria de ler sua tese, se possível envie no meu e-mail:vivivp2002@yahoo.com.br
    Obrigada, bjs

  8. Li seu texto “Não me chame de Guerreira”.
    Achei excelente. Parabéns!!
    Também gostaria de ler sua tese.
    Abraços, Carlos Amorim.

  9. Pingback: Não me chame de Guerreira | Adriano Gosuen

  10. Estou exatamente assim.
    Pesquisando sobre como ser melhor é conseguir dar conta de tudo, me deparei com seu post, estou no ultimo ano do curso de pedagogia e me encaixe exatamente em cada palavra do seu texto, me sinto exausta. Tenho 41 anos e 3 filhas, a menor está com 5 anos e necessita integralmente de mim. As vezes penso que não vou dar conta.

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