Quando eu era criança se alguém me perguntasse: “o que você quer ser quando crescer?” minha resposta certamente seria: “eu quero ser linda”. Hoje acho isso bem triste, além de meio assustador. Eu tive uma mãe linda, o que já explica muita coisa, mas também vivi sob um discurso de que, de alguma forma, eu “precisava” ser bonita para poder ser alvo/sujeito de afeto. Ninguém me amaria se eu não fosse linda. Naquela época, lá nos anos 80, começava a aparecer o termo autoestima em alguns textos em revistas femininas e matérias em programas de TV. A tal autoajuda, possível desdobramento da autoestima, só surgiria com força nos anos 90. Essa autoestima comercial e comercializada começou a nos ensinar que, para ser feliz, você precisa se amar e se aceitar (eu incluiria um “se perdoar” aí, mas no geral ninguém fala disso). A ideia é bem boa e até empoderadora, mas o resultado tem sido muito uma determinada padronização estética do existir. Então, essa autoestima aí, esse amor que só vale se for dentro do padrão, é uma armadilha muito bem construída. Só há um jeito de amar a si: esforçar-se para estar no padrão. As mulheres (todas) têm que ser magras, mas gostosas. Têm que ser brancas, têm que ser femininas, têm que ser jovens. As mulheres gordas têm que emagrecer. As mulheres negras têm que embranquecer; as mulheres trans têm que se hiperfeminilizar; as mulheres velhas que têm rejuvenescer. Você TEM que se amar, TEM que se cuidar. Todas lutam para manter essa autoestima em dia, para se amar, mas sempre dentro do que é socialmente aceito. Ter autoestima é manter-se bonita, é manter-se no padrão, é manter-se consumindo. Dá-lhe roupa nova, sapato da moda, xampu que tira o frizz, creme que hidrata os cabelos com química, micropeeling, batom com filtro solar, manicure semanal, perfume francês, retoque na tintura de 20 em 20 dias, alongamento, pilates, redutor de apetite, massagem modeladora. Aí você olha no espelho e diz: eu me amo, eu me cuido. E cai na armadilha do consumo.
Há saídas? Sempre. Mas também há um custo social. Toda a mulher que foge do estereótipo paga um preço. É olhada com desprezo porque está gorda, não tem força de vontade, coitada. Podia dar um jeito nessa barriga, né? Falta de tempo não é desculpa, quem quer vai lá e faz. Uma tinturinha naquele cabelo, por favor! Por que não alisa, ia ficar tão linda? Passa um batomzinho pra ficar mais feminina. Hoje, sim, tá vestida de mulher! A autoestima pode fazer muito pela gente. Pode nos ajudar a encontrarmos segurança, autonomia, a nos respeitarmos e aceitarmos mais. Mas temos que estar atentas e fortes pra não cairmos na armadilha do consumo. Na armadilha do “você precisa melhorar para ser feliz” ou de achar que só há um jeito de se amar, de se achar bonita, de ser.
* Lá pelas tantas, cheguei a ser bonita. Alcancei aquele lugar no topo do Olimpo das pessoas desejáveis. No que isso resultou? Tive algumas poucas relações verdadeiras, conheci montes de homens cretinos, sofri assédio, abuso, violência. Virei uma propriedade do outro. Um enfeite. Pra mim, o preço pago pela aceitação social e pelo capital afetivo decorrentes da beleza foi bem alto. De repente, comecei a mudar. Emagreci, deixei de ser gostosa. Cortei o cabelo, deixei de ser feminina. Parei de usar roupas bacanas, deixei de ser estilosa. Parei de usar lentes de contato, deixei de ser bonita. Parei de pintar o cabelo, deixei de ser jovem. E comecei a incomodar. Muito. As pessoas que me conheciam antes, linda, se incomodam por eu estar “largada”, muito magra, com cara de doente, pouco elegante, envelhecida. As pessoas que me conhecem agora acham que sempre fui assim, feia e desleixada: feminista, né? Ia ficar mais bonita se deixasse o cabelo crescer, se pintasse de ruivo, se tirasse os óculos, se usasse maquiagem, se colocasse um vestido. Se entrasse no padrão, se fizesse o que se espera de mim. Aí sim eu seria bonita. Não, Miga, hoje eu não quero ser bonita. Hoje eu quero ser livre.
Caraca que textão! Falou tudo, obrigada, “tamo junta” hahahahhaha
Menina, depois que descobri seu blog meu trabalho fica atrasado, quero ler tudoooo.
Aplausos! Texto maravilhoso! Eu sempre fui linda ao natural mesmo! Ahahahah Minha mãe era súper vaidosa e também me cobrava isso. Mas sempre, sempre achei a vaidade uma prisão. Já somos escravas de tanta coisa sem perceber. Nessas amarras eu não me prendo! Uso batom quando eu quero (quase nunca). Uso maquiagem se eu quiser (quase nunca). Pinto as unhas se eu quiser (quase nunca). E se eu tiver um casamento ou uma formatura pra ir e não estiver de unhas feitas, vou mesmo assim, sem me preocupar.
Ótimo!