No ano da desgraça de 2022, insuportável viver no Brasil de Bolsonaro. Não há nem como respirar, Helena.
Criança
O Rafa é uma pessoa muito importante pra mim, ele sabe porque eu escrevi uma carta pandêmica mais ou menos explicando o porquê. Ele não está nos agradecimentos da tese, só percebi hoje, talvez tenha sido depois da separação que ele tenha crescido em mim, mas isso não importa. O que importa aqui é que ele me disse: devemos deixar a desesperança para dias melhores, eu até meio que consegui, mas esses dias melhores não chegam nunca então parece que a desesperança já está tomando conta. Ela sai de mim nas palavras, não consigo escrever nada positivo há tempos, mesmo tendo um caderno com cartas de amor não enviadas. Saí também no silêncio, porque é tanta dor que parece que se eu começar começar falar não vou parar mais e vou me despedaçar. Eu estou tentando, Rafa, estou mesmo, mas não tá dando.
Blonde
Eu gastei todo meu dinheiro em comida, nem o álcool está ajudando, o estômago doendo de tanto carboidrato, nenhum preenchimento que alivie a dor de existir nesse ano da desgraça de 2022. Vou perdendo o controle aos poucos, mentira, já não tenho controle alguma há tanto tempo, nem inteligência tenho mais, o Brasil me deixa burra, o kit gay, o banheiro unisex, a mamadeira de piroca, Lula satanista, e eu em aulas de política e cidadania falando para adultos como se fossem crianças e atingindo apenas o vazio. Mais de 20 anos em sala de aula para viver essa morte horrível, de sonhos, projetos, saberes, vivências, eu mesma morrendo tanto, não vai sobrar nada eu acho. Assisti a um pedaço do filme da Norma Jeane e só um nojo, mulher não é nada além de um pedaço de carne, uma obra prima, disseram. Que incrível deve ser poder enxergar aquelas cenas e não ver o horror e a violência, só o belo e a arte. A cada dia tenho mais ódio de gente assim. A cada dia tenho mais ódio de gente.
Bom dia com Ternura
Hoje a faxina rendeu, a madalena ficou maravilhosa segundo o público-alvo, a chuva chega para apaziguar o calor de ontem e eu sorrio em silêncio e memória, após umas horas de apreciação da sua beleza. Preciso de quase nada para ser feliz.
The queen is dead
A rainha morreu, o rei está nu e nós vivemos em estados diferentes. Enquanto você lê os comunistas penso nas contas a pagar, na quantidade de açúcar que ingeri hoje e na tristeza de não ter sido álcool. Continuo me agarrando às palavras, mesmo que sejam apenas variações de tristeza, talvez para compensar o quanto somos felizes juntos. Agora habito a falta, tudo é novo aqui no nada repleto de amor.
Domingo
Tenho uma coleção de caderninhos e bloquinhos, desses de carregar na bolsa; boas canetas, de ponta grossa e escrita macia; muitas lapiseiras, porque é mais gostoso apagar os erros; um dicionário de papel, tradicional e seguro; e todo esse universo que, segundo dizem, só sai da gente por escrito.
Queimadas
Lá fora queima o frio, aqui dentro queima o amor.
Espera
Continuo esperando a hora da virada, aquele momento mágico em que tudo finalmente dará certo. Mas moro no Brasil e continuo sendo eu, não há muita esperança a não ser a espera.
Jô
Bom dia, Helena, o Jô morreu e eu fico pensando aqui em como é importante que ele tenha existido. Que tenha criado o Capitão Gay e conduzido as melhores entrevistas. Como é importante que tenhamos gente inteligente, debochada e crítica conservando conosco, nos mostrando o mundo e tudo o que não sabemos dele. Eu sinto falta da gente ser inteligente.
Pergunta
O que você faria se todo o existir lhe tivesse sido permitido? Se nunca tivessem lhe apontado o dedo, o erro, a culpa? Quem você seria se toda a vida lhe tivesse sido ofertada? Se nunca lhe tivessem negado o amor, a aceitação, a proteção? Como você existiria sem essa mão apertando o peito?