“Olhei-me no espelho e vi Bilquis* sendo engolida pela rotina, pelo descaso, pela pressão. Senti caírem todos os pedaços que cortei na carne para me adaptar a um espaço tão pequeno: liberdade, audácia, talento, vontade, gozo. Tudo me foi sendo tirado lentamente, nem notei. Só me enxerguei quando saí dessa redoma apertada. Abri os olhos e percebi que já não cabia no desejo estéril, na presença muda, no abraço distante, na suave reprovação. Cresci silenciosamente e deixei que meus membros livres retomassem sua imensidão. É um tanto assustador ser enorme. Não me encaixo nos espaços, vou esbarrando em pessoas e coisas, me acostumando a ser imensa. Ser assim descomunal assusta quem me enxerga. E dói, muito tempo essa amplitude contida e represada. Olho para o lado e vejo outras mulheres se agigantando, esticando o corpo ereto. Altivas, caminhamos juntas, excessivamente espaçosas. Não há mais o que nos contenha.”
*Bilquis: Rainha de Sabá, representada no livro e na série American Gods, de Neil Gaiman.