Eu me tornei uma pessoa de hábitos. Depois de anos de vida louca, completamente desregrada, acabei me rendendo a uma rotina que me organiza e me acalma. Obviamente, o mérito não é meu. A ordem veio com os filhos, o trabalho, as responsabilidades da vida adulta. Hoje acordei bem mais cedo do que gostaria, depois de (mais) uma noite mal dormida. Tom sempre me acorda cedo, ansioso pela companhia e por não perder tempo nenhum da vida. Passo café, desejo bom dia para o meu amor, tão longe, tanta saudade. Enquanto tomo várias canecas de café quente busco algum conforto para o dia que começa. O que me resta é manter a normalidade. Gostaria de nem tirar o pijama, mas visto o uniforme jeans-camiseta-tênis e me preparo para sair. Pego meu coração*, penduro no pescoço e me ponho em movimento. Cruzo com pessoas segurando livros, o coração aquece, o mesário com a camiseta Resist de Roger Waters, eu segurando meu coração na mão, um sorriso de cumplicidade. Em casa, esfrego roupas num tanque cheio. Hoje tem comida de afeto, feita com todo o cuidado para não contaminar com a tristeza**. Uma última conferida na rede antes de partir. Como eu amo essas pessoas que nem me conhecem, que seres incríveis com quem eu tive o privilégio de compartilhar essa existência. Lá estava a “Cantata para um bastidor de utopias”, avisando que ainda cabe sonhar.*** Lá estavam tantos, tantos livros. Olho para os meus e penso na edição de “1968: o ano que não terminou”, que dei de presente para uma aluna. Lembro da professora de Antropologia contando que teve que enterrar os livros no quintal para não ser presa e que o primeiro livro que comprei na faculdade foi “Dicionário do pensamento marxista”, segura de que nunca seria presa por isso. Penso em todos os livros que não comprei, que não li, se haverá tempo ainda para chegar nos milhares de pdfs baixados ao longo dos anos. E que, obviamente, minhas estantes me incriminam em todo e qualquer aspecto, da política à pornografia. Sorrio sozinha, orgulhosa. Faço um bolo de chocolate, escrevo, trabalho e me pergunto se realmente haverá festa com o que restar.****As instituições funcionam normalmente, disseram, mas tenho uma playlist que se chama “não irão nos matar”, e nessa distopia o que precisamos é saber que tudo está normal, mesmo que haja alguma coisa fora da ordem. Nós temos livros e bordados, dança, abraços e poesia. E uma coragem ousada que não se deixa abater. O medo caminha ao lado, por certo, mas Chico já nos disse que amanhã vai ser outro dia. Eu sigo em frente para não morrer de dor. Sempre foi assim. Mas há algo que eu aprendi nesses anos todos: mesmo com lágrimas nos olhos, seremos máquinas de guerra.***** Eu sei quem caminha ao meu lado. Continuamos na luta, pro que der e vier.
*O coração foi um presente de Lena Muniz, uma amiga-artista maravilhosa
https://www.instagram.com/lenamuniz1/?hl=pt-br
**Desde de assisti “Como água para chocolate” tomo esse cuidado. Às vezes não funciona.
*** “Bordar, num pano de Linho
Um poema Tambor que desperte o vizinho.
Pintar, no asfalto e no rosto
Um poema alvoroço que adormeça a cidade.
Dançar com tamancos na praça
Cantar, porque um grito já não basta
Esfarrapados, banguelas e
Meninos de rua, poetas, babás.
Vistam seus trapos, abram os teatros,
É hora de começar:
Alerta, desperta, ainda cabe sonhar.
Alerta, desperta, ainda cabe sonhar.”
**** Livro de Francisco Mallmann
***** https://www.facebook.com/events/1629366873807208/