Há muito para se falar a respeito da série e o desenvolvimento da nova temporada merece uma sequência de posts para abordar cada personagem/situação em específico. Eu, que sou uma senhorinha que ainda se sente como uma adolescente, estou fazendo uma imersão no meu passado longínquo como parte do processo terapêutico e também como projeto pessoal e sinto-me particularmente mobilizada pelos dramas da série.
Então, adentrando aos horrores narrativos das minhas agendas, ilustradas por fotografias e lembranças absolutamente constrangedoras, tenho percebido que, para além dos padrões de comportamento e pensamento que carrego há mais de 30 anos, há algo que transformou em absoluto minha forma de ver e estar no mundo. A tal “virada de chave” que se comenta tanto hoje em dia, para mim, foi o feminismo e, em particular, a Marcha das Vadias.
Foi nas discussões para a organização da Marcha que eu descobri que boa parte das minhas questões sobre feminilidade e sexualidade vieram de uma estrutura machista, sexista e misógina e que não eram exclusivas da minha história, mas faziam parte da história da maior parte das meninas/mulheres. Foram as leituras e os debates feministas que me ajudaram a ressignificar a inadequação, a inaptidão, o não pertencimento, a não aceitação e tantas outras vivências que me marcaram e me tornaram quem sou.
Mas, veja bem, tudo isso aconteceu há menos de 10 anos, o que significa que eu passei a maior parte da minha vida sem ter nenhuma noção do aspecto social dos meus próprios problemas, afogada em culpas e dúvidas nascidas de algo que não dizia de mim, mas sim do mundo a minha volta. De lá pra cá tenho caminhado nessa possibilidade de reescrita de mim e foi nessa perspectiva que eu assisti à série.
Além dos dramas românticos, a questão da bissexualidade e a situação vivida pelo Eric, que trouxeram um tanto de sentimentos e memórias, foi o abuso vivido por Aimee que mais mobilizou a necessidade de uma reflexão sobre quem eu fui e como aprendi sobre o ser mulher nesse mundo tão hostil.
Aimee é uma personagem construída no recurso da comédia, ingênua e meio burra, que contrabalança a figura intelectual-durona de de Maeve. E é por essa ingenuidade que o fio narrativo do abuso foi tão bem construído. Ela não percebe que sofreu violência, preocupa-se apenas com a calça estragada – tão difícil encontrar um jeans com um bom caimento, sabemos bem. Vai tentando falar sobre, com a polícia, com a mãe, ninguém entende realmente o que aconteceu, ninguém acolhe. Nem ela entende bem o que aconteceu, vai andando a pé para a escola, de salto, de tênis, não consegue mais entrar no ônibus, vai transferindo a imagem do agressor. “Eu sorri pra ele”, ela transita do nada aconteceu, para o não foi tão importante, para o foi minha culpa, para o não estou segura.
E é aí que a violência mora. Na consciência de que nunca estamos seguras. Quando eu fui atacada, andando na rua a caminho de um show, segui meu caminho, assisti ao show, voltei sei lá como, mas no dia seguinte eu não consegui sair de casa. Tinha outro show (era um festival) e nesse eu já estava programada para ir de carro, pois era mais longe. Não consegui sair de casa. Não consegui dirigir até o lugar do show. Nunca mais andei de noite naquele trecho de novo, estava a algumas quadras de casa, na minha rua, na frente da casa de um amigo.
Só uma pessoa soube o que aconteceu, na época não falávamos sobre abuso, assédio, violência, nada disso. Apesar de todas passarmos por diferentes situações horríveis e traumatizantes. E de todas nos sentirmos muito culpadas.
Por isso essa temporada foi tão marcante, pois a conversa que as meninas têm, numa homenagem ao Clube dos Cinco, aponta para algo que já sabemos, mas não falamos: mesmo sendo todas diferentes, o que nos une é o fato de sermos sempre alvo. E é a partir dessa consciência que surge a cena mais marcante da temporada, num momento potente de “Nós por nós”.

A força dessa imagem me encheu de felicidade, pois é do nosso movimento coletivo que se pode construir um caminho de existência nesse mundo que nos quer eternamente subjugadas, violentadas e mortas. Se eu, que venho de outro século, já entendi isso, espero que as adolescentes que estão crescendo com a primavera feminista percebam com mais facilidade que o caminho precisa ser construído por todas nós, juntas.
Essa força já tinha sido representada na 15ª temporada de Grey’s Anatomy, mas acredito que Sex Education tem uma entrada maior entre jovens e adolescentes, possibilitando que meninas que passam por isso todos os dias percebam que superar essa violência a que estamos sujeitas passa por falar sobre, por buscar ajuda e por apoiarmos umas às outras.
Se ainda pretendemos “marchar até que todas sejamos livres”, que possamos trazer isso para as nossas relações diárias, construindo esse “nós por nós” de uma maneira diferente.
Ps: todas essa reflexão passa pela boa e velha (e batida) discussão sobre a sororidade. Como a Srta. Bia desativou o blog e o maravilhoso texto “porque não transo sororidade”, deixo aqui pra vocês um compilado do importante debate que rolou lá pelos idos de 2013 sobre os usos do termo.
Bjos.
http://luna-is-the-queen.blogspot.com/2013/08/sororidade-101-sobre-feministas-brancas.html