Navegar

Eu sou uma pessoa da terra, você dirá que é o signo, eu direi que é a dureza da vida. Porque houve um tempo em que quase, quase. Cheguei tão perto. Hoje vejo minha amiga Lena Muniz produzir o seu Manifesto Água Viva* enquanto olha para o Tejo e penso que nessa outra vida, outro século, lá quando quase, naveguei, vi o Tejo, flanei, voei, amei, chorei. We will always have Paris. Quase.

Não havia fronteiras suficientes para me segurar e o saudosismo de hoje nasce dessa desertificação da vida. A boca seca de um real que se esfacela. Então eu olho para os dias melhores que já vieram e penso que posso criar um quase novo, porque eu fui aos bloquinhos de carnaval.

Depois de um tempo eu comecei a navegar em bits e bites, era tudo mato, já contei que trabalhei no instituto de tecnologia? Não sei como nem por que. Mas sei que conheci tanto e naveguei tanto que me tornei uma pessoa melhor. Bem melhor, muito mais dura, mas essa é outra história que nada tem a ver com minhas navegações. Usávamos navegadores que nos conduziam a lugares desconhecidos, a pessoas desconhecidas. E íamos (nos) conhecendo.

Antes da ditadura do algoritmo até no rostolivro podíamos chegar a mares nunca dantes navegados. Hoje virou tudo um grande quintal, às vezes um mato novo, uma erva daninha diferente, mas nada disso faz o menor sentido porque hoje navegamos num mar de ódio, uma bile fétida que nos corrói. Mesmo para quem está acostumada com águas turbulentas é demais.

Então eu penso nessa outra vida, há várias, mas essa é uma das minhas favoritas. Flanando em Paris, passando o verão no campo, vivendo um amor safado com aquele homem lindo que gosta de Joy Division e fala francês no meu ouvido. Tomaríamos café preto conversando na cama sobre folhetins, cantaria Chico, porque sou dessas mulheres que só dizem sim, em português. E nossos corpos se entenderiam perfeitamente. Haveria toda aquela arte, toda aquela história, um tanto de poesia e uns carros para queimar, que é a melhor parte dessa outra vida, ser tudo possível.

Aqui, onde o possível mora numa caixa de fósforo, navego nesses mares do que foi e do que poderia ter sido, bem como história e literatura. Navego em letras e sons, cantarolo chorando, choro escrevendo. Quando consigo escrever.

Já contei que a analista está de férias?

The Flâneuse Herself – Writing in the Margins
Flâneuse

Lena Muniz: Artista visual, pesquisadora, ilustradora e ceramista vivendo em Lisboa.

https://www.instagram.com/lenamuniz1/

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