Tendo passado boa parte da vida acompanhada de discursos de autoajuda e de que todas as tretas que a gente enfrenta vêm para nos ensinar alguma coisa, desenvolvi o estranho hábito de esperar a hora da virada. Aquele momento mágico em que você acorda bem, depois de muitas horas de sono revigorante, plena de aprendizados e maturidade, toda trabalhada na superação. Cantando “The dog days are over”.
Mas não é assim que a banda toca, né? Normalmente o viver envolve aguentar, um dia depois do outro, um arrastar-se sobre comiseração e problemas intermináveis, numa tentativa de se equilibrar na corda bamba da sanidade, rezando (às vezes literalmente) para que não piore mais. Mas piora, ahhh sempre piora.
Então, veja, eu me encontro nessa situação: “comemorando” um ano do fim do meu casamento, sem estar nem perto da possibilidade de ressurgir das cinzas num estilo extreme make over. Bem que eu queria aparecer toda linda and jovem, como se nada tivesse acontecido, as pessoas dizendo “nossa, como vc tá ótima!”.
Mas não rolou e o lidar com a vida também exige encarar que muitas vezes você não dá conta e tá tudo bem. Por isso resolvi escrever esse post. Pra começar o caminho inverso, pensando na jornada e não na chegada.
Sim, Daniel San, há um longo percurso na estrada da superação que não passa por plot twists mirabolantes e maravilhosos. Se a vida não é um filme hollywoodiano em que entra a trilha sonora da bad, aparece você chorando enquanto lava a privada ou queima as fotos do casal, e depois tá tocando “I will survive” e você tá toda linda passeando em Paris, então é preciso trilhar uma estrada diferente.
Hoje percebo que a minha jornada iniciou durante o doutorado, quando comecei a ler sobre a potência do fracasso e passei a repensar minha própria relação com o sucesso. Porque, por incrível que pareça, num determinado momento da minha vida eu comecei a ser reconhecida como uma pessoa bem-sucedida. Um casamento ótimo, super mãezona, profissional competente, milituda lacriany. Mesmo tendo sido vida loka durante tanto tempo, parece que eu tinha “dado certo” na vida.
Mas daí que não era nada disso. O casamento tinha milhares de problemas, a maternidade gerava crises de ansiedade, a competência profissional criou um sintoma de perfeccionismo que se tornou uma armadilha perigosíssima e a militância… bom, deu no que deu (pra todas nós).
Mas nada disso aparece nas redes sociais. Por mais que a gente saiba que é tudo pose, que só mostramos nosso melhor, que é preciso estar atenta e forte para não cair nas armadilhas da visibilidade e do capital simbólico, a gente faz parte da rede e se comporta de acordo. Aos poucos fui aprendendo a expor os dilemas e agruras da vida cotidiana e agradeço muitíssimo às amigas maravilhosas que me ensinaram que falar sobre os nossos processos de dor, medo e fracasso também faz parte da convivência em rede.
Então, em 2016 eu estava assim, assoberbada com a rotina de trabalhar 40 hrs, cuidar dos filhos e da casa, dos mil compromissos e ainda escrever a tese. Consegui às custas da minha saúde mental, do meu casamento e de toda a vida que eu havia construído. Depois da defesa, eu estava esperando o turning point que seria vivido plenamente na virada do ano. Férias, tempo para parar, respirar e acertar o prumo. Acreditava mesmo que poderia retomar tudo o que estava em suspenso há tanto tempo.
“Eu adoro essa foto. Não porque estou toda linda e cabeluda fazendo a Tieta nas dunas de Mangue Seco, mas porque ela representa muito da minha força e resiliência. Foi tirada há 20 anos e marca um ponto de virada fortíssimo na minha vida. Esse sorriso era o primeiro que eu dava em muito tempo, pois estava saindo do fundo do poço após a separação dos meus pais, um término de namoro muito traumático e um processo depressivo que resultou em um emagrecimento extremo.
Tudo em mim mudou naqueles anos: meu rosto, meu corpo e minhas ideias. Ainda sinto saudades de quem eu era.
Lembrei dessa foto por dois motivos: primeiro porque contei essa história no bar por esses dias e me orgulhei de novo de mim mesma por ter sobrevivido. Segundo porque me perguntaram hoje como está a vida pós-tese e percebi que estou em um lugar bem próximo do que eu estava há 20 anos. O processo de vivência da Marcha e da escrita da tese foi muito intenso e sofrido, porque mobilizou toda a minha história de vítima-sobrevivente e provocou mudança, tirou meu chão. Nem sei bem onde estou, o que sei é que não gosto desse lugar. Não por causa dos cabelos brancos, mas por causa das ideias duras e secas. Já me avisaram, cuidado para não adoecer.
Bem, adoecida já estava, agora estou no processo de cura. O que inclui também sair desse ambiente tão tóxico.
Minha despedida está sendo a conta-gotas, eu sei, mas faz parte do processo.
Quando voltar, pretendo ter um novo sorriso me esperando ;)”
Esse texto foi escrito em novembro de 2017, aguardando o momento de superação. Que nunca veio. Terminei o ano em processo de separação, totalmente devastada e sem nenhuma perspectiva de nada. Em 2018 aluguei um apartamento e tive que criar (para mim e para os meninos) um novo lar. Ao deixar para trás um projeto de vida construído ao longo de 15 anos, precisei repensar absolutamente tudo sobre quem eu era e o que eu queria.
E é assim que o caminho funciona. Não é linear, nem está traçado. Vamos abrindo as clareiras com facão, nos cortando e machucando sem chegar em algum lugar seguro. Às vezes paramos, sem saber se é o certo, se é o melhor caminho, se não estamos andando em círculos, se chegaremos em algum lugar. Às vezes nos perguntamos porque não pegamos aquela estrada florida e asfaltada que estava ali atrás. Não há como saber.
Mas a grande questão, para mim, foi não percorrer o caminho sozinha. Tive ao meu lado pessoas muito, mas muito especiais que me acolheram nos piores momentos. Que me acompanharam na dor, no choro, na insônia, na descrença, na falta de auto-estima, no fracasso. Conseguir me abrir para essas pessoas foi outra etapa muito difícil. Eu não gosto de gente, sou extremamente fechada e indisponível afetivamente. Mas talvez o instinto de sobrevivência tenha falado mais alto.
Escrever tem me ajudado muito também. A maioria das coisas que escrevo nem publico, ficam guardadas em cadernos, agendas e arquivos do word sem título. O que foi publicado aqui está repleto de dor e tristeza, porque foi o que vivi todos os dias durante esse ano. E me surpreendi com o impacto que o texto Não me chame de guerreira teve (vou escrever mais sobre isso). Mas tive momentos felizes também, que serviram para que eu me lembrasse de que tenho sobrevivido a todos os meus piores dias.
E me parece que esse é o caminho. Pintar para cima e para baixo, esfregar com a direita e depois com a esquerda. A superação talvez venha, quando menos esperar. Essa também é a potência de viver um dia de cada vez. Lidar com o que tem pra hoje. Festejar as pequenas vitórias como conseguir dormir 6 horas seguidas ou fazer três refeições. Dançar e rir como se ninguém estivesse olhando. Ouvir Belchior olhando as nuvens. Assistir a um filme abraçada com os filhos no sofá.
Ninguém falou que ia ser fácil.
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