2020 foi um ano horrível, para muita gente foi o pior ano da vida. A perda de pessoas queridas, o projeto genocida necropolítico, a falta de perspectiva, de apoio, de dinheiro. A precariedade, o horror, o ódio. Ver, estampado na cara, o quanto as pessoas são horríveis: mesquinhas, egoístas, burras. O ocaso da humanidade, dos projetos coletivos e pessoais. Não saímos melhores, não aprendemos nada, levará uma geração inteira para reverter o dano causado pelo combo pandemia-governo.
Sobreviver tem exigido da gente uma série de habilidades e competências que se tornam cada vez mais imensas e intensas. Saúde mental entrou definitivamente para a ordem do dia e até quem estava ok com a terapia, já fazendo tratamento, teve que dar conta de um existir sufocante e absurdo. A falta de expectativa, o medo da doença, a desesperança, passaram a exigir de nós muito mais do que coragem. óbvio que aqui estou falando da maior parte da minha bolha, que pôde fazer homeoffice e, mesmo com diferentes questões geradas pela necessidade de garantir a subsistência sem sair de casa, teve condições de se proteger minimamente.
Então, nesse primeiro ano de pandemia achamos que a quarentena seria apenas o tempo de 40 dias ou até as férias de julho, aprendemos a fazer pão, a meditar, cuidar das plantas, fazer pequenos reparos domésticos, flertamos e acreditamos que seria um aprendizado para a humanidade. Lá por julho percebemos que nada disso fazia sentido, que as pessoas estavam morrendo e que não melhoramos em nada. Eu, vivendo essas flutuações todas, tive uma série de transformações tão profundas que ainda não consigo mensurar. Parei de fumar, consegui dormir, me relacionar com meus filhos e decidi que queria viver. Pela primeira vez eu não apenas não queria morrer, mas realmente queria viver. Foi o que eu fiz.
Fui aprender a viver uma nova vida. Muitas coisas fiz do mesmo jeito que sabia, mas vi que o resultado não era o que eu esperava. Então fui arriscar fazer diferente. Fui buscar outras formas de existir, de conhecer, de aprender, de amar, de ser. Tudo era possível na segurança do meu quarto. A análise foi fundamental nesse processo todo, nada disso teria sido possível se não houvesse acompanhamento terapêutico e uma intensa vivência de autoconhecimento. Olhar meus demônios e piores fantasmas, deixar que viessem a tona para que pudessem ir embora ou se transformar em outra coisa. Há muito tempo quero viajar mais leve e continuo carregando toneladas de passados. Dores, frustrações, violências, traumas, medos. Tenho morrido há tanto tempo que quando o mundo começou a morrer eu pude, finalmente, viver.
Meus últimos anos foram de dor e sofrimento intensos, a morte que todo mundo viveu nesse ano de 2020 eu já estava vivendo há anos, já tinha morrido em 2018 e em 2019. E por isso soube o que precisava fazer para viver nesse primeiro ano de pandemia (sim, porque continuaremos nessa por algum tempo). Mandar embora a pulsão de morte foi o primeiro passo, colocar a mim e aos meus filhos como prioridade, o segundo. Deixar o passado para trás, encontrar o que me alegra, me dá prazer, me faz feliz permitiu que eu me descobrisse, me desvendasse. Não há fórmula nem mágica. Sobreviver requer esforço, viver requer coragem.
Conhecer o caminho, trilhar o caminho. Cultivar subversiva alegria, mesmo quando o mundo se desmancha a sua volta. Vencer a pulsão de morte, seja ela sua ou de quem te governa. Vencer a pulsão de morte. Para que então possamos reconstruir esse mundo, ou criar um novo. Haja força, haja alegria, haja amor.
Feliz 2021, se possível.
Difícil dizer qualquer coisa, mas que, pra todes nós, a pulsão de morte não fique maior que o necessário.
Acho que é isso. Abraço virtual.